Análise do discurso de professores do ensino público - Parte 1

29/09/2009 16:41

  Por Rita de Cassia da Silva

 

As palavras são tecidas a partir de uma multiplicidade de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.”

                                                                                   (Bakhtin, M.)

 

            As crenças sobre educação, sobre sucesso ou fracasso escolar podem influenciar ou determinar a conduta docente, assim, conhecê-las e interpretá-las, tendo o professor como alguém que reflete sua ação e capaz de interpretá-la, pode ser um caminho ou um novo movimento, para a possibilidade de mudanças na educação.

            As pesquisas atuais sobre o trabalho docente, procuram investigar o pensamento do professor, e dentro desta vertente, colocam-se as concepções, as atitudes e crenças. Várias são as definições do que vem a ser pensamento do professor e nelas o termo crença aparece embutido. Assim, pretendemos, também desenvolver nosso estudo dentro desta vertente e analisar o conceito de crenças.

            O termo crença vêm da religião. Etimologicamente, de acordo com Cunha (Dicionário Etimólogico,1982, verbete CRENÇA), crença significa crer, acreditar, confiar. Do latim é “credere”, acreditado, acreditar, acreditável, credenciado, que é aquilo que merece crédito, creditar. Crédito a alguma coisa ou alguém que dê garantia ou segurança. Segurança na verdade de alguma coisa, confiança. Pode ser traduzido também por “credentia” (latim medieval) significando ato ou efeito de crer, fé religiosa, aquilo que se crê e é objeto de crença, convicção íntima, opinião adotada com fé e convicção.

            Deste modo, gostaríamos de conhecer um pouco mais sobre o conceito de crenças, qual a sua natureza e o que as fundamentam, para também falarmos sobre o pensamento do professor. Neste último ano nosso trabalho de pesquisa esteve voltado para a conceituação dos termos crenças e saberes, tendo como intenção definir o que pretendemos dizer com pensamento do professor. Também construímos a imagem de professor que queremos utilizar e a relação entre seus saberes e sua prática. Saberes que são construídos com experiências da vida cotidiana e que podem influenciar ou determinar as decisões e ações dos professores, a forma de estruturar e organizar seu mundo profissional, sua visão de escola e de aluno e seu discurso.

            Sabemos, no entanto, que conhecer e saber interpretar estas crenças implica entender o seu discurso, assim, pretendemos também caracterizar o discurso do professor a fim de relacioná-lo com crenças e saberes.

            Os saberes e as crenças são construções individuais e coletivas, são construídas historicamente e estão permeadas de ideologias. Os saberes são formas de pensamentos e conhecimentos que vão tomando um caráter de cientificidade mesmo não o sendo de fato. Não se trata de um mero senso comum e nem de um saber refletido e ou desalienado, mas um saber que com suas bases na ciência, precisam ser traduzidos de forma que a escola entenda, podendo se tornar um tipo de discurso. As crenças, podemos tomá-las como um senso comum pois, estão baseadas em fatos não científicos.

            Segundo Carmo (1997) elas são manifestações construídas no imáginário social, assim como os mitos e as representações. Como em nossa pesquisa queremos enfocar também as crenças, foi necessário buscar uma conceituação para este termo, bem como para o termo saber, e assim, para compreender o discurso do professor. Deste modo, construímos nossos conceitos no capítulo 4 deste trabalho, com a intenção de adentrar no universo emocional para entender este imaginário social. Para esta conceituação usamos o conceito de ideologia de Gramsci e de saber cotidiano de Heller. Não separamos crenças e nem saberes de ideologia, ao contrário, fizemos um interrelação entre estes conceitos e ficará mais explícito no texto o motivo dessa nossa escolha.

            No entanto queremos ressaltar aqui o que Carmo (1997) nos coloca como distinção para a análise do discurso “ O imaginário ao contrário das ideologias, não remete diretamente às instituições, ou partidos, como elemento de mediação entre o discurso e a formação social. Seus produtos provêm de diferentes tempos, num passado distante e indefinido e permeiam o tecido social de uma forma mais intensa e a partir de convivência social nas diversas situações” (Carmo,1997,p.16). Assim, procuramos adentrar no universo das crenças e dos estados emocionais para entender o discurso professoral e de onde ele vem. Carmo considera que todas as formas de comunicação verbal constituem a expressão de componentes ideológicos. Deste modo, queremos considerar as crenças um dos componentes ideológicos.

           

II - O discurso pedagógico

 

            Antes de falarmos em discurso pedagógico gostaríamos de falar o que entendemos ser o discurso. Para Orlandi (1996) o discurso não é apenas transmissão de informações ou somente uma comunicação, mas sim efeitos de sentidos entre os interlocutores, enquanto parte do funcionamento social geral. Para esta autora, “Os interlocutores, a situação, o contexto histórico-social, as condições de produção, constituem os sentidos das sequências verbais “(p.26). Quando falamos algo falamos de algum lugar para outro alguém também de algum lugar da sociedade, é isso que dá a significação presente nas verbalizações.

            A autora coloca que todo discurso nasce de um outro discurso e remete a outro, deste modo, não se pode falar em um discurso mas sim em processo discursivo que precisa ser compreendido como resultado de produtos discursivos sedimentados, institucionalizados. Todo discurso traz uma estratégia que é a de prever, situar-se no lugar do ouvinte para antecipar representações, a partir de seu próprio lugar de locutor, afim de regular a possibilidade de respostas por parte do outro. 

            O discurso pedagógico segue estas características e queremos definí-lo como um discurso circular de acordo com Orlandi (1996). Ele é um discurso ou um dizer institucionalizado, sobre as coisas. Por estar vinculado à escola e a um sistema educacional, ele obedece a uma forma própria que é desta instituição. O discurso pedagógico acaba sendo o que é e se revela em sua função devido a instituição escolar. 

            A escola é o lugar onde o discurso pedagógico veicula e se torna válido, legítimo. Segundo Orlandi (1996) a escola “ atua através dos regulamentos, do sentimento de dever que preside o discurso pedagógico e este veicula, se define como ordem legítima porque se orienta por máximas e essas máximas aparecem como válidas para a ação, isto é, como algo que deve ser. Na medida em que a convenção, pela qual a escola atua, aparece como modelo, como obrigatória, tem o prestígio da legitimidade.” (p.23) 

            A escola é portanto, o lugar do discurso pedagógico. Ele só é o que é devido a escola. Ele é um dizer institucionalizado sobre as coisas, que se garante, garantindo a instituição em que se origina e para a qual tende (Orlandi, 1996). 

            O discurso pedagógico segundo Orlandi (1996) não é neutro ele, no seu funcionamento, possui 3 tipos: o lúdico, o polêmico e o autoritário. Para distinguí-los se consegue somente pela distinção que se apresenta na relação entre os interlocutores e o referente, ou melhor, nas condições de produção. 

            No discurso lúdico , há a expansão da polissemia (múltiplos sentidos), pois ele está exposto à presença dos interlocutores, podendo mudar. No polêmico, a polissemia é controlada porque os interlocutores direcionam, cada um para si, o referente do discurso, já no discurso autoritário há a contenção da polissemia porque o agente do discurso pretende ser único e oculta o referente pelo dizer. 

            O discurso pedagógico se apresenta como veremos mais adiante, dissimuladamente como transmissor de informação e faz isso transformando a informação à uma rubrica de cientificidade. No âmbito escolar percebemos o discurso autoritário mais que os outros devido ao autoritarismo existente nas relações humanas. O autoritarismo está nas relações sociais, está na escola e está no seu discurso. 

            Segundo Orlandi (1996) o discurso pedagógico se caracteriza como um discurso autoritário, pois sofre um processo interno que decide de antemão quem faz parte e quem não faz parte dele, quem está apto a se apropriar deste discurso e quem não está, há um esmagamento do outro. E é autoritário, também, por não permitir interlocutores mas sim um agente exclusivo, o professor, e o referente estar ocultado pelo dizer. Todo o discurso se caracteriza pela presença do referente e dos participantes do discurso, ou seja, o objeto do discurso e os interlocutores. 

            O discurso pedagógico aparece como discurso de poder onde um ensina e o outro aprende; A ensina B e A influencia B, o professor ensina porque sabe e o aluno aprende porque não sabe, a estratégia adquire uma forma imperativa e saber é poder. Quem sabe tem a autoridade do saber, quem não sabe deve ouvir e aprender de quem sabe. Forma-se uma imagem de quem deve ensinar e de quem deve aprender através da autoridade do saber. 

            Podemos pensar em formações imaginárias onde as imagens que se tem de si mesmo, do ensino e do aluno torna-se imagem dominante. A imagem dominante segue um esquema que obedece a uma gradação de autoritarismo, que vai da imagem que o professor tem de si mesmo até a imagem que o aluno tem do professor e do referente. 

            A comunicação pedagógica segue o seguinte percurso: imagem do professor que ensina (inculca) a imagem do referente (metalinguagem, ciência/fato) para alguém, que é o aluno (imagem que se tem de aluno) na escola, que é o lugar, o onde (aparelho ideológico). 

            Assim, mais do que informar, explicar, influenciar ou persuadir, ensinar é como inculcar. Inculcar um dizer, através de questões, fórmulas, repetições, de forma que o aluno aprenda. Acaba sendo uma estratégia onde há um esmagamento do outro. O outro tem que se submeter àquele que possui o saber. Há sempre uma relação hierárquica entre o professor que é uma autoridade na sala de aula e o aluno que deve obedecer e acatar o dizer do professor. 

            Faremos, a partir de agora, uma exposição de nossa idéia de professor, dos conceitos de crenças e saberes e da metodologia da análise do discurso.

 

O PROFESSOR

  

            O centro de nosso estudo é o professor. E é nele, nas suas crenças que queremos pensar, e é no seu cotidiano e no cotidiano da escola, que estas suas crenças vão sendo construídas. Crenças e saberes que passam a fazer parte do discurso diário do professor. 

            O professor é, para nós, um ser humano, ser social, constituído e constituinte de seu meio. Enquanto pessoa humana, age e sofre as ações de sua sociedade, ele constrói e é construído por ela. A sociedade é feita por ele e ele é feito por ela, portanto o professor é um construtor de cultura e de saberes e ao mesmo tempo é construído por eles. 

             O professor é uma pessoa que vive em integração com seus pares, e dentro de uma cotidianidade construída com todos os elementos humanos. Ele participa dela com todos os aspectos de sua personalidade e em todas as esferas da vida, trabalho, lazer, descanso, atividade social, intelectual, etc. e vai se constituindo aí enquanto pessoa e enquanto profissional. Enquanto profissional ele passa por um processo de profissionalização que se mescla com as fases de sua vida pessoal (cf.Cavaco,1991), com início, meio e fim, ou seja, começo de carreira que se casa com as expectativas da fase da juventude, meio de carreira com a fase da vida adulta, a maturidade, e a aposentadoria, fim de carreira, com a meia idade, a entrada na terceira idade.

            Deste modo, ele passa por um percurso profissional onde acontecem mudanças de aspirações, de sentimentos e mudanças de sentido da vida e da profissão. Muitas crenças vão sendo estruturadas e desestruturadas nestas fases. Algumas vão sendo estruturadas no curso de formação de professores no início de carreira e ao longo da carreira, e nesse percurso ou se afirmam ou se desestruturam. E não podemos esquecer que quando ele vai para o curso de formação inicial, ele é alguém que em sua trajetória de vida como filho e como aluno, já passou pela escola e já construiu expectativas, crenças e representações, que muitas vezes são ignorados no curso de formação e que o leva a atuar de forma que não corresponde ao trabalhado nos cursos. 

             Além disso, a maioria dos nossos professores são mulheres e há portanto, uma interpenetração da vida pessoal, profissional e também de gênero (Lopes,1994), que são evidenciados em sua trajetória profissional e vão dando significados às experiências docentes. A partir disso, eles vão construindo saberes específicos que dão um sentido à pratica cotidiana da escola. Há um modo próprio de significar a ação. Mas esta significação não é sempre individual ela é também coletiva já que o professor está inserido num contexto que é social e numa cultura escolar. 

            Estes saberes que vão sendo construídos nestas rotinas de trabalho tomam um caráter de validade psicológica à medida que resolvem problemas e vão dando sentido a algumas das práticas docentes e determinando formas de pensar e agir específicas. São saberes cotidianos que se tornam sólidos, quase que científicos para os professores. Passam a fazer parte da rotina, se cristalizam, muitas vezes deixam de ser conscientes, acabam sem o controle da racionalidade, ficam repetitivos, e não permitem mais movimento, de forma que o professor tenha um prisma destas experiências cotidianas. Heller (1970), diz que esta cristalização leva ao pensamento alienado, “As formas necessárias da estrutura e pensamento da vida cotidiana não devem se cristalizar em absolutos, mas tem que deixar ao indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de explicitação. Se estas formas se absolutizam, deixando de possibilitar uma margem de movimento, encontramo-nos diante da alienação...” (p.37). 

            Nossa concepção de professor é a de um profissional intelectual, capaz de refletir sobre seu trabalho e capaz de transcender a alienação, não o vemos como um mero executor de tarefas. Para nós o professor atua como sujeito , nas suas formulações de objetivos e em suas estratégias de trabalho. Ele pode algumas vezes estar equivocado nestas suas formulações, por falta de espaço reflexivo e não por que não é capaz de construir conhecimentos acerca delas. Se este espaço lhe for garantido, ele terá a oportunidade de detectar contradições, analisar e buscar caminhos.                       

             O trabalho docente acaba seguindo uma rotina que o professor põe em ação de forma relativamente consciente e racional, mas sem precisar avaliar o seu caráter arbitrário, logo, ele nem sempre escolhe ou controla verdadeiramente sua ação (Perrenoud,1993), muitas vezes ele age a partir da sua personalidade, hábitos, caprichos, preferências, automatismos, angústias ou culpabilidades e sem um controle da racionalidade (p.29). 

            Deste modo, a sua conduta enquanto docente nem sempre é questionada por ele mesmo e muitas vezes não se considera responsável tanto pelo êxito como pelo fracasso dos alunos. Não vê nenhuma relação entre a sua conduta e o rendimento deles, conseqüentemente será pouco provável que se esforce para melhorar o rendimento escolar das crianças em sala de aula, podendo até considerar que a dificuldade está apenas na compreensão que as crianças têm ou não dos conteúdos. 

            O professor é também, um mediador e como mediador ele tem uma imagem de si mesmo e de como ensinar e isto é o que mantêm o sistema de ensino tal como ele é. Esta imagem é criada pela própria instituição escolar que legitima suas ações, seu discurso e lhe dá autoridade de proclamar um saber e um dizer que é tido como verdadeiro e legítimo. 

            O professor imbuído de um saber e de uma imagem de si mesmo como autoridade, se apropria do cientista e se confunde com ele sem ficar claro que sua posição é a de mediador do conhecimento. Apaga-se o modo pelo qual o professor apropria-se do conhecimento do cientista e ele se torna o possuidor do conhecimento. Desta forma, sua opinião torna-se definidora devido à sua autoridade professoral. O sistema de ensino atribui a posse da metalinguagem ao professor, autorizando-o e o professor, acaba apropriando-se da ciência e do cientista e se confundindo com ele sem se mostrar e se ver como voz mediadora. 

            Orlandi (1996) diz que “pela posição do professor na instituição (como autoridade convenientemente titulada) e pela apropriação do cientista feita por ele, dizer e saber se equivalem., isto é, dizer z é igual a saber z. E a voz do saber fala no professor” (p.21). Assim, já que o professor diz logo ele sabe e isso autoriza o aluno, a partir do contato com o professor, a dizer que sabe, isto é, ele aprendeu. A isto se chama escolarização. As mediações nesse jogo ideológico acabam se transformando em fins em si mesmas e as imagens que o aluno vai formar de si e do professor estarão dominadas pela imagem que ele deve fazer do lugar do professor. O aluno, devido a sua maturação, seu nível de desenvolvimento abaixo do professor, passa ser tutelado por alguém, que resolve por ele, pois ele ainda não sabe o que verdadeiramente lhe interessa, a isso chamamos de inculcação. 

            A autora também afirma que há uma distância entre o ideal e o real, nesta imagem de como ensinar que o professor e a escola vão construindo, imagem ideal que pode distorcer o próprio funcionamento e objetivo da aprendizagem: “a distância entre a imagem ideal e o real é preenchida por presunções, mediação essa que não é feita no vazio mas dentro de uma ordem social dada com seus respectivos valores. As mediações se sucedem em mediações provocando um deslocamento tal que se perdem de vista os elementos reais do processo de ensino e aprendizagem “ (Orlandi, 1996, p.21). 

            Para exemplificar essas mediações podemos pensar, por exemplo, no material didático. É necessário que se aprenda não a utilizá-lo como material didático para algo ( no caso, para aprendizagem) mas saber o material didático, como preencher espaços, fazer cruzinhas, etc. A reflexão é substituída pelo automatismo. Na verdade saber o material é saber manipulá-lo. Distorce-se o objetivo do material e da função que o mesmo deveria exercer na aprendizagem. 

            Na construção das imagens, da imagem ideal de aluno, aquele que não sabe, e a imagem ideal do professor, aquele que tem a posse do saber é legitimado pelo sistema de ensino, há uma distância que é preenchida pela ideologia. Ideologia que na verdade é uma reprodução da ordem social, ou seja, a escola converte hierarquias sociais em hierarquias escolares e com isso legitima a perpetuação da ordem social. A escola como bem diz Althusser, (1980) é um dos aparelhos ideológicos do Estado, e como tal reproduz as relações que se dão na sociedade, ela é reprodutora das relações sociais, onde uns mandam e outros obedecem, uns possuem muito e muitos não possuem. A educação por sua vez, serve para reproduzir a ideologia dominante e as relações de poder. O professor exerce um papel fundamental nessa reprodução da ordem social. Ele é ideologicamente preparado, como já dissemos anteriormente, durante sua vida pessoal, de formação e profissional para exercer tal função. 

             Porém, queremos nos reportar a Dias da Silva(1998), para não massacrar o professor, que diz “Fica claro que, se em muitos momentos, o professor pode ser apontado como grande vilão do perverso projeto escolar (já que ele centraliza a aprovação ou a reprovação do aluno, fundado em visão bacharelesca ou precária, ideologicamente alienada e/ou didaticamente inócua); em outros, o professor é certamente mais uma vítima desta mesma perversão -como ator de trabalho solitário e mal remunerado, sem investimento em sua formação continuada, sem estudo, feedback ou incentivo para seu fazer docente.” (p.37). A autora não compartilha de uma visão ingênua ou cega, e nós também não, sobre o trabalho docente, sabemos que existem os maus professores, no entanto com esta sua colocação, ela nos dá pistas para sair desse jogo de “mocinhos e bandidos” e tentar decifrar quem são e como trabalham os professores. Assim, o que ele pensa sobre e o que faz em sala de aula será o alvo de estudo, em nossa pesquisa. E o que ele pensa e faz está relacionado às imagens que ele tem de como pensar, de como dizer e de como ensinar. Imagens construídas na vida, na escola e na formação.

            

Definição de crenças e saber

  

            Apesar de a expressão crenças ser amplamente registrada na literatura sobre pensamento do professor ela nem sempre vem definido. O termo crença é um termo vago que vem diluído em outros termos e dentro de diversas teorias, às vezes, ele pode ser circular e aparecer em diversos enfoques, com linguagens diferentes, significando a mesma coisa, e as vezes ele vem acompanhado de outros termos para explicar os comportamentos ou tipos de pensamento. Às vezes ele aparece assim: crenças, valores, expectativas, perspectivas, teorias implícitas e atitudes; outras vezes: o professor reflete, emite juízos, crenças, atitudes; ou : “no processamento de informações do professor tem antecedentes internos, crenças e conhecimentos” (Garcia,1987 e Pacheco,1995). 

            Mesmo assim será possível avançar um pouco na definição deste conceito sem de maneira alguma esgotá-lo. Para isso fomos procurar o termo em algumas abordagens e foi aí que verificamos uma circularidade, pois ele aparece, ou misturado com outros termos para explicá-los, ou é explicado por outros termos, sem contudo ser definido, e para que neste trabalho ele não seja difuso e confuso, preferimos brevemente mostrar o que algumas teorias falam sobre ele, e depois justificar a sua utilização ou não em nosso estudo. 

            Assim, o termo crença é utilizado de diversas formas sob diversos enfoques. Do ponto de vista psicológico, o termo aparece sob o nome de pensamento, representação, orientações cognitivas, teorias implícitas, saberes, além de valores, expectativas, perspectivas e atitudes. São categorias vistas como parte da cultura e são estruturadoras de formas de pensamento e de comportamentos. 

            Na concepção materialista dialética, que também tem várias maneiras de enfocar o pensamento humano, encontraremos a tal circularidade que falamos antes. A teoria marxista não tem a preocupação de definir e nem de trabalhar com este conceito e sim com o conceito de ideologia. Desta forma, a palavra crença não aparece como nome próprio, ela vem situada junto com outras categorias, ou até subjacente a uma delas, para explicar algum conceito ou situação. Assim, pode ser ideologia, senso comum, visão social de mundo, conjuntos estruturadores de valores, pensamento cotidiano, representações, idéias, teorias que se orientam para a estabilização, legitimação ou reprodução da ordem estabelecida ou que aspiram a outra realidade ainda não existente (Löwy, 1989). De qualquer forma, a crença é uma construção social e o sujeito participa desta construção passiva ou ativamente. 

            De acordo com o autor e sua linha de pensamento vamos encontrar o termo crença de modo implícito. Optamos por dois autores para buscar uma definição do termo: Gramsci com o conceito de ideologia e Heller com o conceito de pensamento e saber cotidiano. Acreditamos que estes dois autores podem contribuir com a definição que procuramos, pois nas teorias deles encontraremos também substratos de explicação psicológica na construção e elaboração de uma crença, e pode ser estes substratos que permitirão a compreensão de algumas concepções e crenças que permeiam o trabalho docente. Na interpretação de Gramsci sobre ideologia podemos encontrar um caminho teórico para a explicação do que vem a ser este termo crença. O mesmo pode ser encontrado em Heller no seu conceito de pensamento cotidiano. 

            Antes de entrarmos nestes dois autores, queremos justificar nossa escolha dos termos ideologia e pensamento cotidiano. A escolha do conceito de ideologia se deve pela sua própria definição. De acordo com Van Djik (1997,p.105) a ideologia pode ser entendida como sistema básico de cognições sociais fundamentais e como princípios organizadores das atitudes e das representações sociais comuns a membros de grupos particulares. E como tal elas controlam, mesmo que indiretamente, as representações mentais, os modelos, que formam a base de interpretação de um discurso (p.105). 

            O autor diz que, “Embora as ideologias sejam, sociais e políticas, e se relacionem com grupos e estruturas societais, elas possuem também sua dimensão cognitiva” (p.107),e podemos dizer que também tem sua dimensão afetiva. As ideologias, por incorporar objetos mentais, como idéias, pensamentos, crenças, apreciações e valores, leva a crer que se trata de um conjunto organizado de crenças. Isso não quer dizer que pretendemos definir ideologia apenas como sistema de crenças, mas sim, podemos procurar nossa definição de crença neste conceito de ideologia, pois elas segundo o autor acima citado, pode ser entendida como a base abstrata e axiomática dos sistemas de crenças dos diversos grupos sociais, “ as ideologias deveriam, pelo contrário, ser concebidas como a base abstrata, axiomática, dos sistemas de crenças, que os grupos partilham em sociedade” (Van Djik,1997,p.107). Os valores são as bases a partir dos quais avaliamos e consideramos o que é bom ou mau, certo ou errado (cf. Van DjiK, 1997,p112). 

            As ideologias são representações sociais e não apenas cognições individuais, e como tal, elas tem sido definidas em termos sociológicos ou sócio-econômicos, relacionados com grupos, posições de grupos, conflitos, interesses e dominação. Elas podem ser dominantes, de um grupo dominante e imposta a um grupo dominado, mas podem ser ideologia de grupo dominado também, de qualquer forma, elas controlam as auto-identificações, os objetivos e as ações dos dois grupos (cf.Van Djik, 1997,p.107). 

            Enquanto cognitivas, implicam conhecimento social, apreciação, compreensão e percepção, e pode por isso, ser definida como sistema de cognição social essencialmente avaliativos; enquanto social, são partilhadas por membros de grupos ou instituições e estão relacionadas a interesses de grupos. São como modelos interpretativos comuns a toda sociedade e proporcionam aos membros dos grupos, a compreensão da realidade social, mesmo que parcial, e compreensão das práticas cotidianas e das relações com outros grupos. As ideologias controlam nossas vivências cotidianas (cf. Van Djik, 1997,p.108).

            Portanto, são importantes para nossa tentativa de definir o que vem a ser uma crença. Por essa referência aos componentes axiomáticos e abstratos como base das ideologias, componente estes, que consideramos avaliativos, pois, tanto o sujeito como seu grupo fazem uma avaliação das idéias e dos fatos, antes de aderir a ele. As ideologias estão relacionadas a sistemas de crenças e como tal são definidoras de concepções, normas, valores, posições dos indivíduos e de grupos, isso justifica nossa escolha deste conceito. Consideramo-la como um conceito que muito ajuda na nossa definição e para pensarmos em como se estruturam e se organizam as formas do pensamento nas experiências cotidianas. 

            Do mesmo modo no conceito de pensamento cotidiano encontramos uma relação entre pensamento e afeto (Heller,1977,p.341), pois o pensamento é caracterizado por uma eleição de conteúdos. Esta eleição se dá pelo valor mais elevado que damos a uma situação concreta ou a uma idéia. Assim, há uma carga afetiva relacionada ao pensamento cotidiano, há sentimento. Sentimento que acompanha o pensamento e o comportamento humano. Os sentimentos surgem como reações afetivas aos diversos fatos da vida e são sentimentos de sim e sentimentos de não ( Heller, 1977, p.348). 

            Atração e repulsa (Heller,1977,p.348), são componentes importantes do pensamento e leva-nos a aceitar ou refutar um fato, uma determinada situação, ou uma idéia, de acordo com o sentimento de sim ou de não. Podemos aceitar ou não um pensamento ou nos deixar conduzir ou não por ele, de acordo com a carga afetiva que jogamos nele. Isso explica a eleição de um pensamento, e a seleção para as tomadas de decisões do dia-a-dia. 

            Esta carga afetiva embutida no pensamento e no saber cotidiano é um componente importante para podermos avançar na nossa definição de crença (Heller,1977,p.341). Sendo o afeto uma das bases que fundamenta uma crença, consideramos importante falar um pouco mais disso, para avançar na compreensão do que vem a ser este termo crença, pois nela também há uma carga afetiva, e pode ser esta que torna algumas crenças tão cristalizadas. Assim, no conceito de ideologia e de pensamento cotidiano, dos dois autores que trabalharemos a partir deste momento, encontraremos estas explicações. 

            Podemos neste momento, depois de justificar nossa escolha dos conceitos acima, procurar nos autores citados, as explicações dos componentes avaliativos e afetivos, para fundamentar nosso conceito de crença. 

            Gramsci, filósofo marxista, entende ideologia como práxis de classes que são antagônicas e que determinam as concepções de mundo e os comportamentos dos homens. Do mesmo modo Heller , também filósofa marxista, desenvolve uma sociologia da vida cotidiana e nesta as idéias de pensamento e saber cotidiano. Estes últimos são necessários para que os indivíduos possam desenvolver suas atividades de forma mais ou menos consciente sem precisarem recorrer a todo instante a um processo de reflexão, pois algumas de nossas ações podem ser automáticas. Tanto a ideologia quanto o pensamento cotidiano podem promover a alienação, e os dois autores procuram na ciência e na arte o modo de superação, pois a reflexão que o indivíduo ou grupo realiza leva-os a entender e até a modificar seu mundo. Assim, Gramsci fala da filosofia, do pensamento científico como modo de superação da ideologia não transformadora, e Heller trabalha com o pensamento não-cotidiano, que é um pensamento refletido, mais elaborado, filosófico ou científico, para também superar a alienação. 

            Gramsci (Coutinho,1980,p.79 e 82), considera a ideologia como um pensamento fragmentado e não totalmente dentro do real, pois seus conteúdos cognoscitivos não correspondem adequadamente à reprodução da realidade. A ideologia não é uma representação objetiva do real, pois ela não reflete só o que existe fora da consciência e da vontade do sujeito que conhece, mas sim as aspirações e os projetos do sujeito que atua. Ele não analisa a ideologia de um ponto de vista estritamente gnosiológico, ou seja, como falsa consciência em contraste com a consciência adequada proporcionada pela ciência. Ele vê a ideologia como força real, que altera e modifica a vida humana. 

            A ideologia é o mesmo que filosofia para Gramsci, “porque ela é uma unidade entre uma concepção de mundo e uma norma de conduta adequada a ela” (Gramsci, apud Coutinho,1980,p.83). Nesse sentido, o homem quando expressa sua concepção de mundo está fazendo filosofia, (Coutinho,1980,p.83), portanto ele é sujeito construtor de idéias( ou saberes e crenças), que são ideológicos. 

            Gramsci, na análise de Coutinho (1981,p.85), utiliza o termo ideologias arbitrárias e orgânicas. As arbitrárias seriam superficiais, fragmentos da vida cotidiana, seriam tipos de pensamentos e opiniões da vida cotidiana, mais como senso comum ou folclore. As ideologias arbitrárias são individuais ou de pequenos grupos e são artificiais, inventadas, de breve duração, são desejadas, e portanto, passível de serem modificadas. Elas estão em contraste com a ideologia orgânica que ele define como sendo a filosofia, e esta última é mais hegemônica, mais estruturada e tem a capacidade de se tornar classes nacionais ou categorias de pensamentos, pois elas são historicamente construídas, e são necessárias para constituição de uma certa estrutura. 

            Desta forma, a palavra crença pode perfeitamente ser uma das formas de manifestação da ideologia e pode ser tanto arbitrária como orgânica. Podem ser de breve duração e por isso podem ser modificadas como as ideologias arbitrárias. E podem ser mais estruturadas, como as orgânicas e fazerem parte de um conjunto maior de idéias. As crenças podem ser definidas como sendo uma forma especifica de ideologia. Elas são um conjunto de idéias e valores que orientam as visões de mundo do indivíduo,(Löwy,1985). Aqui, podemos, como exemplo, pensar nos modismos em educação, muitas vezes mesmo sem conhecimento dos fundamentos de uma teoria pedagógica, alguns professores dizem ser “construtivistas, montessorianos ou interacionista”, só por que virou moda ser isso ou aquilo, simplesmente acreditam que fazendo uma atividade proposta por estas teorias, se tornaram adeptos delas. Isso pode acontecer porque elas no momento, estão sendo valorizadas. Podem então achar que é “feio não ser construtivista”. Isto demonstra uma forma específica de crença que faz parte de um conjunto maior de idéias. 

            Segundo Gramsci (Coutinho,198l), “enquanto historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é psicológica: elas organizam as massas humanas, formam o terreno na qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. Mas enquanto arbitrárias, as ideologias não criam mais que movimentos individuais, polêmicas, etc. Não são completamente inúteis; são como o erro que se contrapõe à verdade e a afirma.” (p.229). Aqui queremos situar nosso conceito de crença em Gramsci, pois entendemos que elas, assim como a ideologia, têm uma validade psicológica que pode influenciar ou manter o movimento que o indivíduo ou grupo faz em direção a alguma coisa ou fato. Esta validade psicológica seria o componente afetivo da ideologia. Validade tem a ver com valor, valor está relacionado também a sentimento. Damos valor aquilo que para nós tem algum significado, aquilo que nos simboliza alguma coisa. 

            Um professor, enquanto indivíduo humano e enquanto professor, pode optar por uma decisão ou ação de acordo com o movimento que ele faz ou é levado a fazer por seu grupo, por acreditar que assim é válido. Enquanto existir validade para ele, uma crença pode permanecer, pode até ser polêmica, mas por sua validade psicológica ele não a modifica, somente modificará quando para ele não mais for útil e portanto sem validade. E estas crenças são partilhadas na escola e acabam fazendo parte da cultura escolar. 

            Heller (1977) com os termos pensamento cotidiano e não-cotidiano e saber cotidiano, pode também colaborar com nossa busca de definição de crença. Pois ao trabalhar com estes conceitos, ela também introduz um elemento que acreditamos ser essencial na definição de crenças, que é a fé. Para ela o pensamento cotidiano não acontece separado das atividades da vida cotidiana e estas são modos de apropriação que estruturam o pensamento cotidiano, e têm a função de direcionar o indivíduo para satisfazer as necessidades vitais cotidianas. Portanto, são mais pragmáticos, pois são destinados a resolver problemas, problemas que requerem uma ação imediata. Diferentemente do pensamento não-cotidiano que supera tal pragmatismo elevando-se a um nível superior, dando lugar à ciência, à filosofia e colaborando assim, para a superação do pensamento alienado que surgem no âmbito da vida cotidiana.

            Vale lembrar que pensamento cotidiano e não-cotidiano está relacionado com vida cotidiana e não-cotidiana, que são conceitos utilizados por esta autora e dizem respeito, o cotidiano à totalidade do ser humano, onde ele vive e assimila toda a sua dimensão, de ser humano singular e genérico, ou seja toda a sua existência humana e histórica; já o não-cotidiano, que é também parte do cotidiano, as atividades humanas são realizadas para além do indivíduo singular, são para a construção da sociedade e nela estão as reflexões e ações que os indivíduos, integrados, realizam para que a vida em sociedade continue existindo, se mantendo ou se transformando (Heller,1970,p.20).

            Heller (1977), também desenvolve a idéia de saber cotidiano, que são os conhecimentos aprendidos e transmitidos, e que são necessários para que os homens possam se movimentar no cotidiano servem para soluções de problemas imediatos. E este saber pode elevar-se em objetivações genéricas para-si, que, segundo Duarte (1996), é a relação consciente que o indivíduo mantêm com sua individualidade e com sua atividade, assim, certas cognições do saber cotidiano podem se tornar mais sólidas, mais científicas. 

            A autora também fala de fé e confiança na estruturação do pensamento, tanto o pensamento cotidiano, que pode ser alienado, como o pensamento não-cotidiano, necessitam destes componentes para serem estruturados. E a fé e a confiança vêm acompanhadas de um afeto, de um sentimento de certeza. De acordo com ela, o afeto é um requisito básico para que o indivíduo possa ter uma certa segurança sobre o que pode ser a verdade. Para que ele se submeta a verdade é necessário que haja confiança no conhecimento dos contornos básicos da verdade, “Os homens não podem dominar o todo com um só golpe de vista em nenhum aspecto da realidade; por isso, o conhecimento dos contornos básicos da verdade requer confiança” (Heller,1970,p.33). Existe uma diferença entre fé e confiança: a segunda é um sentimento mais ligado à experiência, à moral e à teoria. Já a fé está no nível do individual-particular, num sentimento de certeza. A fé nada mais é do que a afirmação da certeza subjetiva (Heller, 1977, p.349). Neste mesmo texto, a autora ainda diz: “Todo saber vem acompanhado por um sentimento de certeza (fé) “. 

            Quando o afeto estiver ligado a confiança, podemos pensar que os juízos que construímos são provisórios e podem ser modificados à medida do necessário, para modificar a orientação de nossa ação. Quando se cristaliza, torna-se um ato de fé, imutável, pode-se incorrer em pré-juízos ou preconceitos (pensamentos estereotipados), (cf. Heller,1970,p.34 e 35). A fé é um sentimento do sim ,extremamente específico, é um sentido de certeza. Igualmente a todos os outros sentimentos cotidianos, também o sentimento de certeza tem sempre um lado cognoscitivo. Nossas formulações têm um caráter cognoscitivo e emocional, pensamos, mas também sentimos coisas quando pensamos, (cf. Heller,1977,p.349). 

            Estes termos fé e confiança, utilizados por Heller para caracterizar o pensamento cotidiano são conceitos, também utilizados na religião, entendemos que são fortemente carregados de afetos e dogmas (verdades irredutíveis). Se estiver empregnado pela fé, como um dogma religioso, pode por isso, enveredar para um pensamento preconceituoso,   tornou-se um elemento dogmático, um pensamento cristalizado numa verdade irredutível. Mas, o pensamento cotidiano pode assegurar-se apenas na confiança e esta não se caracteriza por uma imutabilidade e sim pela possibilidade de ser abandonado ou modificado por uma outra forma de pensar ou crer. 

             Heller, em Sociologia da Vida Cotidiana (pp.347-353), define mais o que pretende dizer sobre a fé e une-a ao saber e ao pensamento cotidiano. Fé e saber, para ela, não estão separados. Essa separação que hoje fazemos, tem sua origem no Iluminismo quando o conhecimento científico se construiu em oposição às afirmações religiosas de então. Mas quando falamos eu creio ou eu sei, estamos expressando um uso linguístico cotidiano que serve para nos dar um grau maior ou menor de certeza sobre alguma coisa, e eu creio e eu sei cumprem funções diferentes, a primeira formulação tem um caráter emocional e a segunda um caráter cognostivo. Mas, como afirma a autora, todo saber vem acompanhado de um sentimento de certeza, e a fé não implica nem em ignorância e nem em saber. Está na vida cotidiana num plano quantitativo muito mais que em outras partes, e se faz necessária para que os indivíduos possam tomar suas decisões o mais rapidamente possível, na verdade, acaba sendo mais econômico. A fé é um sentimento que acompanha comportamentos humanos radicalmente distintos, e entre estes, também o conhecimento. Assim, para a autora, “ a fé é um sentimento de sim extremamente específico, é um sentimento de certeza. E igual a todos os outros sentimentos cotidianos, também o sentimento de certeza tem sempre um lado cognoscitivo.” (p.348). 

            A nós interessa utilizar os conceitos de validade psicológica e afeto na estruturação do pensamento e do saber cotidiano, que estes autores nos oferece, e queremos considerá-los, os aspectos afetivos das estruturas do pensamento. A validade psicológica para Gramsci é o que mantêm e influencia uma ideologia ou concepção de mundo ou ainda a verdade. Para Heller, é o afeto, que dá ao indivíduo a segurança na verdade, mesmo que essa segurança seja provisória. 

            Podemos entender validade psicológica como sendo o que é válido para o indivíduo, ou seja, o que ele concebe como bom e verdadeiro para crer. Existe aí uma valoração e nela podemos captar um afeto. Se existe afeto, existe a crença. A crença é portanto, um ato de fé ou confiança que tem uma validade psicológica para o indivíduo num determinado momento ou contexto histórico. Ela surge para que o indivíduo tenha uma garantia ou segurança na verdade de alguma coisa. Há, portanto, um componente afetivo na crença e este pode ser individual e/ou grupal. É necessário que haja algum sentido para o indivíduo ou para um grupo, para que tenham convicção em alguma coisa, que pretenda ser traduzida em verdade. É esse sentido que dá a validade psicológica a algo ou fato, ou seja, ao pensamento e saber cotidiano ao pensamento ideológico, ou a uma crença. Há, portanto, um sentimento e um componente cognoscitivo embutido numa crença e no saber.

            Com estas reflexões e definições queremos justificar a escolha deste termo. Ele pode perfeitamente ser utilizado, e sem preconceito religioso, pois reflete uma realidade concreta da vida cotidiana, e por isso podemos pensar no que é que fundamenta uma crença. Certamente, há um componente afetivo que dá validade psicológica a ela. Queremos dizer, que o indivíduo nunca constrói uma crença a partir do nada, há um sentimento e um saber nas suas crenças, e mesmo que pareça não ter sentido algum para nós, para ele ou para seu grupo tem um significado ou uma validade psicológica, e isto determina sua ação. Esta pode refletir um momento histórico, um certo contexto cultural, e pode estar dando sentido a alguma coisa ou fato. Assim, por trás de uma crença ou embutida nela há um sentido ou significado, que pode ser emocional e/ou cognostivo, para um indivíduo ou grupo , é isso que precisa ser investigado para entendermos o que leva um sujeito a uma ação e a uma determinada decisão.

            Tentamos estruturar um pouco este conceito de crença para então investigarmos as crenças do professor. Foi possível situar as crenças dentro destas categorias, mas, não podemos afirmar que suas crenças são alienantes ou não, sem antes ir lá na escola investigar através de nossa pesquisa. Podemos apenas afirmar que em suas crenças há um componente afetivo e cognoscitivo e podem ser este componentes que lhe dão validade e que as fundamentam, portanto, dizer agora, sem dados empíricos, que todas as crenças do professor de escola pública é de cunho ideológico-alienante é correr o risco de cair em preconceitos. Certamente há ideologias por trás de uma crença e elas também podem ser investigadas, para entendermos melhor as crenças.

            Mizukami (l987), ao analisar os fundamentos da prática docente chega à conclusão de que há uma desvinculação entre a teoria e a prática dos professores, eles até escolhem abordagens teóricas alternativas, tidas como progressistas, como sendo o ideal para trabalhar, mas a prática acaba se sedimentando no ensino tradicional. A nós parece que eles sentem mais segurança aí, confiam mais nessa prática do que nas outras teorias. Ela levanta a hipótese de que o ensino tradicional tem se cristalizado de tal forma nos modelos de ação docente que os tem condicionado, entendemos que é de fundamental importância o estudo destas práticas sedimentadas em algumas crenças e que estão relacionadas a uma prática pedagógica solidificada numa concepção tradicional.

            Nesta cristalização, podemos inferir, existem crenças, e estas podem ter adquirido uma tal validade psicológica que acabam por impedir o professor de transformar seu modelo de ação. Acaba sendo com um ato de fé em algumas práticas, tornando o modo de agir cristalizado em um pensamento imutável, até que venha a ser questionado por ele.

            Assim, pesquisar o que leva o professor a fazer como faz e a pensar como pensa pode ser um caminho para levantar algumas crenças. O professor é alguém que pensa, preocupação das pesquisas sobre pensamento do professor, e é também alguém que sente, este sentir, queremos traduzir por afeto, queremos unir pensamento e sentimento, para falar do trabalho docente.

 

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